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Daniel Luz

São Jorge e o dragão

“Qualquer um pode ficar com raiva – isso é fácil, mas ficar com raiva da pessoa certa e na medida certa e na hora certa e com o propósito certo, e da maneira certa – isso não está ao alcance de todos e não é fácil.”

― Aristóteles


Um vagabundo a pedir esmola, num vilarejo antigo e pitoresco, parou junto a uma pensão que tinha o interessante nome de “HOSPEDARIA DE SÃO JORGE E O DRAGÃO”.


– Por favor, senhora, pode arranjar-me um pouco de comida? – ele pediu à senhora que o atendeu à porta da cozinha.


– Um pouco de comida? Para um vagabundo qualquer, um mendigo? Não! – ela retrucou, áspera. Por que não trabalha para viver, como homem honesto? Vá embora.


Ao meio da estrada, o vagabundo parou, olhou para as palavras “SÃO JORGE E O DRAGÃO” e, após uma breve reflexão, voltou e tornou a bater.


– Agora o que você quer? – perguntou-lhe a senhora enraivecida.


– Por favor, senhora – foi a resposta –, se São Jorge também está aí, posso desta vez falar com ele?


A gente tem, frequentemente, que pedir pela segunda vez para atravessar o dragão interior das pessoas, não é verdade? Porque há muito mais de dragão do que de São Jorge em todos nós.


Às vezes vemos São Jorge. Um sorriso. Um alô. Palavras amáveis.


Depois o dragão mostra os dentes. Fogo, enxofre e erupção de ar quente!


E com que rapidez e frequência uma cena segue a outra. Certos dias, você pode defrontar-se com uma fila inteira de dragões. Noutros, sente-se como um deles.


Sim, todos nós temos estados de espíritos mutáveis ou recorremos à melancolia. Mas o distúrbio toma vulto quando a frustração de nossos pequenos problemas diários se transforma em irritação; quando o desespero por causa de circunstâncias desfavoráveis nos leva à depressão; quando a agitação com tudo que vai mal com você se transforma em raiva.


E o dragão mostra os dentes.


Por que ficamos com raiva? O que podemos fazer com ela? Qual a sua causa?


Se você pudesse colocar um termômetro em suas emoções, verificaria toda uma escala de temperaturas raivosas.


Na parte mais baixa do termômetro, as hostilidades gélidas, irracionais, que fazem uma pessoa odiar. Mais para cima, o frio antagonismo de contínua animosidade e velhos rancores.

Então, a uma temperatura normal, as costumeiras suscetibilidades e irritações. Você reconhece seus sintomas – sensibilidade à flor da pele, impaciência à menor dificuldade, fluxo de palavras ásperas.


Daí para diante o mercúrio se eleva. Há flamas temperamentais que lampejam como jatos de vapor. Estas podem tornar-se ódio fervente, escaldante – o sangue sobe, o pescoço e a face enrubescem, o ego não deixa ninguém interferir. E o termômetro alcança o topo quando a fúria explode em violência física – o ponto culminante da raiva.


Para tal extensão, da frigidez do ódio à febre do rancor, as causas conjugadas são muitas.


Vamos enumerar algumas situações promotoras de raiva e ver se são familiares.


O ciúme quando um tipo que não lhe agrada consegue aquela “promoção” que você queria.


O ressentimento quando você comete um erro que o outro não deixa passar. (De dez casos de raiva, nove são causados quando alguém fere nossa autoestima).


Ou o insulto quando alguém o critica ou zomba de sua capacidade para negociar, de sua inteligência, de suas maneiras ou gosto.


Pode ser raiva cega que sentimos quando uma tarefa vai mal, as coisas não se encaminham ou o trabalho se amontoa.


Pode ser a frustração de você sentir-se impotente para manter uma situação ou inábil para realizar alguma tarefa necessária.


Obviamente, em todas essas situações, a causa primordial é a mesma. A raiva brota de alguma frustração do ego, quando a autoestima de alguma pessoa é afetada.


Há também razões não egoístas para a raiva. Você a sente ao ver outra pessoa sendo maltratada ou abusada. Ou a raiva honesta ao lhe fazerem uma injustiça. Essas raivas são válidas.


Vê-se, pois, que a raiva como emoção pode ser boa ou má, benéfica ou nociva. Tudo depende inteiramente das razões por que se apresenta e do uso que você faz dela.


A raiva explosiva é sempre um mal necessário, que o fere e aos outros. É um desejo violento de punir os outros, infligir sofrimento ou mesmo vingar-se.


Se a raiva pode ser correta ou errada, como você pode julgá-la ao ser possuído por ela?


Ou você simplesmente a rejeita de imediato, englobando tudo sob o título não lisonjeiro de loucura.


A raiva é sempre um vício ou pode ser, por vezes, uma virtude?


Admitamos que a maioria de nós a considere um vício ou, ao menos, algo menos que nobre.

Mas será o ódio o rei dos males ou o seu primeiro-ministro?


Por certo você terá essa impressão ao ver como agimos quando com raiva. A maioria das pessoas mente para não admitir que está enraivecida.


– Eu não estou zangado – dizem. Naturalmente que não! Nunca perco a paciência!


Ou negam o fato, atalhando como uma pessoa que vi “berrando”: “Não estou erguendo a voz.”


Na verdade, a raiva de uma pessoa pode prejudicar outros, atentando contra suas personalidades, ferindo-lhes a autoestima, danificando-lhes o equilíbrio emocional.


Mas a raiva pode também prestar bons serviços a outros. Pode desafiar injustiças ou corrigir males que os oprimem. Pode investir com rigor contra o mal.


A raiva de Abraham Lincoln, ao ver pela primeira vez um mercado de escravos em Nova Orleans, fê-lo ordenar:


– Fora daqui rapazes. Se eu vir outra vez uma coisa dessa, vou agir severamente.


A raiva feroz de Tolstói contra a guerra, de Gandhi contra a opressão, de Martin Luther King contra a injustiça.


Naturalmente, trata-se aqui de uma raiva sutil. Mas pode ser explosivo perigoso e, se mal-empregado, destrutivo.


A raiva é uma emoção válida, natural. Como emoção, não é em si mesma nem boa, nem má.

Minha raiva é certa ou errada? Esta é uma questão que você deve propor-se todas as vezes que suas emoções começam a perder as rédeas. E se elas ameaçam explodir – cuidado!

Tenha calma.


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